Era uma vez uma avó…

Era uma vez uma senhora que parece já ter nascido com rugas no rosto e mãos trêmulas. Curioso paradoxo, mas não é que ela tinha mãos firmes o suficiente para costurar lindos vestidos de noiva? Claro que com o tempo começou a precisar de ajuda para colocar linha na agulha e os vestidos de noiva deram lugar às roupas da sua neta… Mas nunca vi mãos trêmulas tão precisas quanto as suas.

Essa velhinha cuidou de mim desde os meus quatro anos de vida. Acho que de certa forma tenho mais características dela do que da minha mãe em mim. Claro que na minha adolescência, apesar de morarmos no mesmo prédio ela foi sendo gradualmente substituída pelas minhas amigas, mas mesmo assim nunca reclamou.

Uma vez me lembro de ter falado que eu gostava de vinagrete e a partir daquele dia comi vinagrete no almoço por mais de quatro anos consecutivos. O melhor vinagrete do mundo.

Nunca precisei rezar, pois ela rezava por mim. Rezava por toda a família. Quando era saudável ia duas vezes por dia na missa, depois passou para uma, depois começou a assistir à missa pela televisão e por último acabou se esquecendo das rezas. Mas sua fé nunca morreu. Por que não herdei isso dela? A única coisa que consigo é questionar esse Deus que tirou ela de mim sem me permitir ao menos uma despedida.

Depois de vinte dias de UTI minha velhinha teve falência dos órgãos no dia 13 de abril. Peguei o primeiro avião possível, no mesmo dia, mas mesmo assim perdi o seu enterro. Ela sofreu e eu não segurei sua mão. Ela morreu e eu não vi seu rosto. Ela foi enterrada e não consegui alisar seus cabelos pela última vez. Estou dentro do seu caixão em uma foto minha colocada nas suas mãos, mas isso não basta. Eu estava com maria-chiquinha nessa foto. Saudades dos penteados e das trancinhas que ela fazia em mim quando era criança. Eu era a única criança que usava trancinhas com imensos laços amarelos para ir à escola. Certamente odiava isso na época, mas daria tudo para ter isso de volta agora.

Sinto saudades das trancinhas, saudades de assistir ao Bozo na sala da sua casa, saudades de sua comida, do seu perfume, de mexer nas suas gavetas, de quebrar suas coisas, de ouvir sua voz, dos seus abraços e simplesmente de olhar para seus olhinhos pequenos. Ela faleceu sem abrir os olhos para meu avô e isso é a grande mágoa que ele carrega dela. Ela morreu e eu estava aqui na Suíça e essa e a grande mágoa que eu carrego de mim mesma.

No final da sua vida minha avó não sabia mais quem eu era. O Alzeimer tirou dela sua capacidade de reconhecer as pessoas, mas não sua memória; ela adorava me contar como amava sua neta. Ela me abraçava como a qualquer outra pessoa, mas eu não me importava, pois seus abraços eram suficiente para alimentar minha alma. Tudo o que eu tenho agora é uma caixa com fotos, uma malha antiga que ela gostava de usar e um cruxifixo que não tirava do pescoço. Será que minha avó cabe mesmo em uma caixa?

Cheguei no Brasil de manhã, em tempo somente de ir para o cemitério ver a montanha de flores frescas em cima da grama onde enterraram minha avó. Ela sempre amou flores. Nunca vi tantas flores e nunca vi flores tão lindas. Mas nenhuma era minha. Nunca me senti tão triste e tão vazia. É como se toda minha vida tivesse perdido o sentido e todas as minhas escolhas tivessem sido erradas. Só consegui senti arrependimento por estar tão longe, raiva por morar na Europa e culpa por ter aproveitado alguns dias em um spa nos Alpes enquanto ela estava agonizando no hospital. Ela me pegou no colo minha infância inteira e dava voltas no quarteirão comigo em um braço e o prato de comida no outro (difícil acreditar, mas um dia eu já dei trabalho para comer). Ela morreu e eu não dei um banho sequer nela. O nó no estômago tem me acompanhado desde então e agora tenho que lidar com a realidade de que minha avó não era imortal e nunca mais vou vê-la viva.

Com a minha avó aprendi o que é amor incondicional, mas nunca consegui aprender a fazer seu delicioso bolo de sorvete. Ela esqueceu a receita antes que eu tivesse tido o interesse de aprender a cozinhar.

Eu sempre pedi para que ela puxasse meu pé quando morresse, senão eu nunca a perdoaria. Não entendo porque ela não veio. Eu tive um sonho com minha avó na madrugada em que ela faleceu. Ela estava no seu quarto conversando comigo e dobrando roupa, meio que fazendo uma mala. Ela conversou comigo tão normal e tão leve, sem nenhum sinal de Alzheimer, que eu comecei a rir e perguntei que milagre tinha acontecido que ela tinha saído da UTI curada e melhor do que entrou. Então ela deu a risada gostosa que só ela sabia dar e me disse: “Você viu, Grazielinha? Agora a vovó não tem mais nada”. Essa foi a última vez que vi e conversei com a minha avó.

Eu sei que a morte vai atingir todos nós, de uma forma ou de outra. Mas a verdade é que nunca estamos preparados para ela. Eu estou muito longe e tudo o que posso fazer daqui, no meio de toda a culpa por ter escolhido viver longe da minha família é sentar, chorar e torcer para que meu avô seja mais forte do que eu. Talvez eu deva aprender a rezar.

Eu prometo que minha próxima mensagem será só alegria, mas dessa vez eu realmente precisava escrever tudo isso. Depois de dois anos morando aqui é bom chorar no colo de alguém. Quem sabe isso me ajuda a digerir tudo o que aconteceu?